Como se sabe, o Brasil passa por uma crise hídrica das mais importantes da sua história, com impactos diretos e indiretos em alguns serviços públicos relevantes (sejam eles objeto ou não de delegação), que vão desde o saneamento básico até a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. A propósito deste último tipo de serviço, embora fontes alternativas tenham sido paulatinamente inseridas na matriz energética brasileira (como a fotovoltaica e a eólica), a energia hidrelétrica ainda responde por 70% daquela matriz – a qual é substancialmente afetada pela variação do índice pluviométrico do país.
Não à toa, as tarifas de energia elétrica já vêm sendo afetadas pela escassez hídrica, dada a necessidade de se recorrer a fontes mais caras (como as termoelétricas) para complementação da oferta de energia no sistema. O sistema de bandeiras instituído pela ANEEL, de alguma maneira, serve como buffer para eventuais choques de oferta para as distribuidoras, mas um ponto ainda tem passado despercebido na análise que geralmente se faz sobre o tema: o impacto desse contexto sobre as parcerias público-privadas no setor de iluminação pública.
Muitos serviços de iluminação pública, hoje, não são mais prestados diretamente pelas prefeituras municipais, mas sim por empresas concessionárias, a partir de contratos de concessão administrativa. Esses contratos, é claro, variam caso a caso, a depender da estruturação financeira subjacente a esses arranjos. De qualquer forma, em regra geral, os concessionários são remunerados por meio do repasse do valor arrecadado pela municipalidade a título de Contribuição para Custeio da Iluminação Pública (COSIP) – podendo ser previsto, em alguns casos, gatilhos remuneratórios ligados à eficiência na prestação dos serviços e expansão de atendimento da rede, além da eventual possibilidade de exploração de receitas alternativas.
Mas de que forma a crise hídrica pode impactar nessas concessões? Isso depende, em essência, de dois aspectos: (i) a forma de cálculo da COSIP; e (ii) quem é o responsável pelo pagamento das tarifas de energia destinadas à iluminação pública.
Começando pelo segundo aspecto, é importante frisar que a energia disponibilizada nos postes não é gratuita. Essa energia é comprada e, portanto, paga às distribuidoras. Se a responsabilidade pelo pagamento da tarifa correspondente é da concessionária – há casos (e muitos) em que a responsabilidade permanece sendo da prefeitura concedente – pode haver, evidentemente, um desequilíbrio (inesperado) entre os ônus assumidos na concessão e a receita projetada – baseada, repise-se, no repasse do valor da COSIP arrecadada junto aos munícipes.
Isso nos leva ao outro aspecto mencionado acima. Muitos municípios, é verdade, estabelecem como base de cálculo para a cobrança da COSIP o valor da tarifa de energia elétrica devida individualmente pelos habitantes do município. Nesse caso, o impacto sobre o custo operacional da concessionária é nulo, dado que o ônus da escassez hídrica está refletido na tarifa. O ponto, todavia, é quando a COSIP é arrecadada com base em um valor nominal fixo (como ocorre em alguns municípios, como São Paulo, por exemplo). Em casos como esse, há um possível descasamento entre o valor arrecadado e o custo da operação, caso a concessionária seja a responsável pelo pagamento da energia adquirida junto à distribuidora.
Nessas situações, o caminho natural seria a renegociação das condições contratuais, de modo a restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro da operação. A Lei nº 8.666/1993, aplicável de forma subsidiária a quase totalidade das concessões de iluminação pública contratadas atualmente, oferece a base legal necessária para tanto, ao estabelecer que o advento de fatos imprevisíveis (ou, ainda que previsíveis, mas de consequências inestimadas) ou mesmo o caso fortuito/força maior, que traga desequilíbrio entre os encargos do concessionário e a sua remuneração, dão azo ao pleito de reequilíbrio.
Vale, em tais situações, observar o procedimento contratualmente previsto para fins de abertura do diálogo destinado à renegociação daquelas condições, a fim de se esgotar, pela via administrativa, a tentativa excessiva de compensação dos riscos e desproporcionalmente assumidos por conta do advento daqueles eventos.