Após a promulgação da Lei nº 14.112/2020, foi inserida na Lei de Recuperação Judicial a disciplina da insolvência transnacional, até então não abordada no texto legal.
A incorporação da insolvência transnacional ao ordenamento jurídico brasileiro opera como uma forma de cooperação internacional entre juízes e demais autoridades competentes do Brasil e de outros países, conduzindo um processo mais eficiente e igualitário, a fim de garantir maior segurança e previsibilidade às empresas que atuam em múltiplas jurisdições.
Para enquadramento nessa possibilidade, os ativos do devedor devem estar localizados em mais de um país ou se verificar a condição de alguns dos credores não terem domicílio no país em que tramita o processo principal, demandando a cooperação entre juízos.
Essa internacionalização do Poder Judiciário se respalda em cumprir atos necessários não só ao do devedor em processo de Recuperação Judicial, mas também em atender ao melhor interesse dos credores e investidores, nacionais ou estrangeiros.
A legislação processual brasileira prevê que a cooperação jurídica internacional englobará citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial; colheita de provas; homologação e cumprimento de decisão; concessão de medida de urgência; assistência jurídica internacional e qualquer outra medida não proibida pela lei brasileira.
Isso é, a Lei de Recuperação Judicial brasileira, em conjunto com o Chapter 15 – capítulo recente da lei das falências norte-americanas, destinado a lidar com os processos de recuperação judicial originados em outros países – permite que investidores estrangeiros e devedores brasileiros renegociem dívidas, em constância ao prosseguimento ao plano de reestruturação econômica.
Entretanto, os atos processuais do pedido de recuperação judicial no Brasil não são suficientes para interromper as execuções e cobranças com o devedor no exterior, uma vez que a insolvência transnacional opera juntamente com a jurisdição internacional, sendo necessário o ajuizamento de pedido próprio no juízo estrangeiro.
Ainda, importante ressalvar: não se confunde a disciplina da insolvência transnacional com a execução de decisão estrangeira, uma vez que o próprio juiz local deverá analisar o caso específico, através de protocolos, os quais deverão tratar da coordenação de determinados atos, da realização de audiências conjuntas e da comunicação com os credores e demais partes interessadas nos processos concorrentes. Assim, a partir de tais elementos concretos, decidir se é o caso de reconhecer o procedimento ou não.
O número crescente de empresas brasileiras em recuperação judicial ou em estado falimentar, com finalidade de estender tais efeitos nas cortes norte-americanas, vem aumentando nos últimos anos. Todavia, essa extensão de benefícios de proteção de ativos no estrangeiro contra credores funciona até certo ponto, uma vez que o instituto apenas regula questões procedimentais, não podendo intervir em questões de cunho material, abrindo portas para ações de anulação e outros procedimentos que buscam recuperar pagamentos da empresa insolvente antes do pedido de recuperação judicial ou falência.
Um grande caso que repercutiu nos últimos meses foi o pedido de reconhecimento da recuperação judicial das Lojas Americanas nos Estados Unidos. A empresa, após o seu pedido de uso do Chapter 15, teve os efeitos da sua recuperação judicial estendidos aos seus ativos lá localizados.
O principal efeito deste pedido é de que os credores consigam acessar os bens localizados fora do país para satisfação de créditos, impedindo o esvaziamento do caixa que será destinado ao da empresa e pagamento da concursalidade de credores.
A disciplina da insolvência transnacional é um marco que pode ser decisivo para a resolução de casos complexos, exercendo um impacto relevante no desenvolvimento de casos contenciosos da insolvência de empresas em recuperação judicial ou falência que detenham ativos ou credores em países diversos.