A Pandemia da COVID-19 foi, até agora, o evento mundial mais inesperado da década e, quiçá, do século XXI e trouxe consigo em sua mala de surpresas impactos nos mais diversos ramos e setores, bem como na vida pessoal de todo ser humano que pode vivenciar esse momento tão marcante do planeta.
Os impactos foram os mais variados, desde hospitais, até a indústria, e passando de forma significativa pelo setor de serviços, ou seja, na economia como um todo, que para além do setor de saúde, certamente o mais afetado durante a pandemia, sentiu de forma profunda os efeitos deletérios provocados pela pandemia da COVID-19.
Além disso, não há dúvidas de que o Direito do Trabalho também foi fortemente impactado, como sempre ocorre em qualquer crise econômica, tendo em vista ser esse um dos ramos do Direito mais propensos a sentir os impactos da economia, já que regula e delimita as regras da relação capital x trabalho, em uma tentativa de se equilibrar dois dos fundamentos mais importantes da República Federativa do Brasil: o valor social do trabalho e a livre iniciativa, nos termos do artigo 1º, IV, da Constituição Federal de 1988.
Foi nesse contexto de grave crise econômica que no início de 2020 o Governo Federal editou várias Medidas Provisórias, em especial a 927/20 e 936/20, essa última posteriormente convertida na Lei 14.020/20, visando, sobretudo, a manutenção do emprego e da renda, com a possibilidade de adoção de várias medidas, entre as quais se destacam: banco de horas estendido, antecipação de férias e feriados, diferimento de pagamento de terço constitucional e abono pecuniário, diferimento de FGTS, redução proporcional de jornada e salário, suspensão temporária do contrato de trabalho, entre outros, não havendo, entretanto, qualquer alternativa mais flexível para a rescisão do contrato de trabalho, que manteve suas regras intactas, nos termos da CLT.
Por outro lado, a MP 927/20 estabeleceu de forma cristalina que a pandemia da COVID-19 constituía motivo de força maior para fins trabalhistas, em um contraponto ao próprio caput do artigo 1º, que estabelecia como objetivo maior da MP a preservação do emprego e da renda.
E foi com base nesse dispositivo da MP 927/20 que várias empresas, sobretudo aquelas dos setores mais afetados pela Pandemia da COVID-19, adotaram a tese de força maior para a rescisão do contrato de trabalho nos termos do artigo 502 da CLT, que conta apenas com o pagamento da multa do FGTS pela metade, na razão de 20%, na hipótese de extinção da empresa ou de um de seus estabelecimentos.
No entanto, na ocasião, o tema foi muito discutido, que passou longe de ser unânime entre os estudiosos do Direito do Trabalho, que sempre alertaram para os riscos provenientes da adoção dessa tese para as rescisões do Contrato de Trabalho.
Nessa esteira, passados quase dois anos da edição dessas Medidas Provisórias, o tema já chegou à instância máxima do Poder Judiciário Trabalhista Brasileiro, tendo sua primeira análise e julgamento em 07/12 último, em julgamento de relatoria do Ministro Alexandra de Souza Agra Belmonte, integrante da 3ª turma do Tribunal Superior do Trabalho.
No voto do julgamento do Agravo de Instrumento em Recurso de Revista de nº AIRR – 410-68.2020.5.07.0024[1], que por unanimidade teve seu seguimento denegado, o Ministro não ignora e perpassa por toda a crise que a pandemia da COVID-19 apresentou para a sociedade brasileira, incluindo, sobretudo o setor privado.
“…Esse evento inesperado (a pandemia), embora tenha alterado de forma significativa o equilíbrio financeiro das empresas, por outro lado gerou para os empregados o risco iminente da perda de seus postos de trabalho. E não se olvida que em circunstâncias tais, o eventual equilíbrio das prestações às quais as empresas se obrigaram sofreu alteração significativa, tornando o pactuado, muitas vezes, impossível de ser cumprido naquele momento, sem o comprometimento de outras obrigações trabalhistas e fiscais, a ponto de aproximar nas relações de trabalho tamanho o impacto, a teoria do fortuito com a da imprevisão na busca de soluções de enfrentamento…”
Todavia, ao denegar seguimento ao Agravo de Instrumento, ele reforça que as Medidas Provisórias tinham como objetivo precípuo a preservação do empregado e da renda, não tendo sido apresentada quaisquer medidas flexíveis relacionadas à rescisão do contrato de trabalho, o que iria de encontro com o seu objetivo.
“…Efetivamente, o foco dos normativos editados pelo governo federal para o enfrentamento da crise mundial, notadamente as caducas MP 927/20 e 928/20 e da MP 936/20, esta convertida na Lei 14.020/20, que promoveram a flexibilização temporária em pontos sensíveis da legislação trabalhista, não foi permitir rescisões contratuais ou a mera supressão de direitos de forma unilateral e temerária por parte do empregador, mas exclusivamente proporcionar meios mais céleres e menos burocráticos, prestigiando o diálogo e o bom senso, para garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais e, por consequência, preservar o pleno emprego e a renda do trabalhador…”
O Ministro ainda destaca em seu voto que a empresa em questão, no caso a Reclamada, não aderiu às medidas de redução proporcional de jornada e salário e suspensão temporária do contrato de trabalho de modo a se tentar preservar os postos de trabalho.
“…Saliente-se, ademais, que a Medida Provisória 927/2020, invocada pela reclamada para justificar a redução das verbas rescisórias da reclamante, a despeito da ocorrência da força maior, instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, e possibilitou a suspensão temporária do contrato de trabalho ou redução de jornada e salário, visando a continuidade das relações de emprego, ao que não aderiu a reclamada. Conforme se constata da referida Medida Provisória, o seu intuito foi a manutenção do emprego e da renda, não se podendo agora invocar a “força maior” para justificar a supressão dos direitos frente à rescisão do contrato de trabalho…”
Finalizando seu voto para afastar a tese de força maior para a flexibilização da rescisão do contrato de trabalho, o Ministro Agra Belmonte se funda no aspecto legal do próprio artigo 502 da CLT e destaca que não ocorreu a extinção da empresa ou do estabelecimento, único motivo hábil a justificar a redução da multa do FGTS.
“…Em que pese a toda a fundamentação, cabe salientar que o art. 502 da CLT, que estabelece a indenização a ser paga no caso de extinção da empresa por motivo de força maior, plenamente válido no período de vigência da MP 927/2020, sequer nela foi mencionado. Portanto, não se acolherá a arguição de força maior como justificativa para rescindir contratos de trabalho se a empresa não foi extinta, ou seja, se não encerrou suas atividades…”
Dessa forma, o Tribunal Superior do Trabalho manteve, por unanimidade, a decisão regional que confirmou a sentença e condenou a reclamada no pagamento de aviso-prévio, reflexos e complementação dos valores referentes aos 20% restantes da indenização do FGTS.
Esse voto emblemático, por ser um dos primeiros da Corte Trabalhista referente a esse tema, demonstra a importância de que cada decisão empresarial, sobretudo no âmbito trabalhista, seja tomada com muito critério e com ciência dos riscos que ela possa apresentar para a companhia, não somente no âmbito trabalhista, mas também no aspecto da imagem da empresa perante à sociedade, sobretudo em razão do ESG (Environmental, Social and Governance), atualmente de extrema relevância no mundo corporativo.
[1] Disponível em: <http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/resumoForm.do?consulta=1&numeroInt=137910&anoInt=2021>