Em agosto de 2021, durante a pandemia da covid-19, o presidente brasileiro sancionou uma lei muito esperada pelas equipes de futebol de todo o país – a Lei nº 14.193/2021, conhecida como Lei da Sociedade Anônima de Futebol (SAF). Essa lei permitiu, por fim, às equipes de futebol se constituírem como sociedade anônima (SAF – S.A. de futebol), criou diretivas legais específicas, tais como regras de governança corporativa e regras fiscais específicas e, ainda, facilitou a captação de recursos para financiar suas atividades diárias. Como sociedade anônima, a SAF é também regida, de forma subsidiária, pelas disposições estabelecidas pela Lei n.º 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas) e pela Lei n.º 9.615/1998 (Lei Pelé – estabelece regras gerais sobre o esporte). Esta estrutura societária é comum em grandes equipes fora do Brasil, tais como o Bayern Munich, que tem grandes empresas esportivas como acionistas, tais como a Adidas e a Allianz.
A Lei nº 14.193/2021 estabelece a possibilidade de constituir uma SAF pela: (i) transformação do tipo societário da equipe de futebol, que costumava ser uma associação sem fins lucrativos, para uma sociedade anônima; ou (ii) cisão do departamento de futebol e dos ativos relacionados com a atividade de futebol, mantendo a pessoa jurídica original e constituindo uma SAF; ou (iii) constituição da SAF para este fim específico, controlada por pessoa natural, pessoa jurídica ou fundo de investimento.
Estruturalmente, a cisão do departamento de futebol e dos ativos relacionados com a atividade de futebol desencadeia algumas obrigações, tais como: (i) a companhia tem que emitir ações ordinárias de classe “A” que serão de propriedade da equipe de futebol ou da pessoa jurídica cedente; e (ii) , a aprovação de alguns assuntos (por exemplo, para aprovar a venda de quaisquer ativos) exigirá o voto afirmativo da entidade cedente, para protegê-la, quando tais ações ordinárias de classe “A” representam pelo menos 10% dos direitos de voto.
Além disso, neste cenário, deve ficar claro que a equipe de futebol ou a pessoa jurídica cedente não deixa de existir, sendo efetuada uma cisão, onde todos os assuntos relacionados com a administração e gestão profissional do futebol seriam da responsabilidade da nova SAF, que, em regra geral, não será responsável pelas dívidas da entidade cedente. A equipe de futebol ou pessoa jurídica pode permanecer como proprietária de ativos, tais como nome, marca e símbolo, com a opção de eventualmente os transferi-los para a SAF, dependendo do modelo de negócio escolhido, da realidade econômica e da governança.
No que diz respeito à realidade econômica das equipes de futebol no Brasil, não é segredo que a maioria delas hoje, incluindo as que jogam nas ligas mais importantes, sofrem com dificuldades econômicas decorrentes de má gestão, leis inadequadas, ausência de regras de governança coorporativa e instabilidade econômica inerente ao Brasil. Para exemplificar a amplitude desta questão, as vinte equipes de futebol brasileiras mais endividadas têm uma dívida total de R$10,2 bilhões, de acordo com um estudo divulgado pela empresa de consultoria Sportsvalue[1]. Foi neste contexto econômico que a nova lei foi aprovada, com a esperança de que a equipe de futebol ou pessoa jurídica original pague seus credores em recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 11.101/05. Em uma outra medida para simplificar o sistema de pagamento e criar uma forma de previsibilidade, será possível optar pela execução dos ativos para o pagamento de credores por um sistema de execução centralizada. Outra via adequada será a negociação coletiva, na qual um plano de pagamento poderá ser definido pelas partes interessadas em uma forma diferente do sistema de execução legal.
Outro benefício econômico desta nova Lei é que, uma vez que as equipes de futebol podem agora ser companhias, poderão também fazer ofertas públicas das suas ações, tendo acesso ao financiamento por meio do mercado de capital (IPOs). Acreditamos que muitos fanáticos do futebol brasileiro estão ansiosos por serem acionistas da sua equipe favorita.
Para evitar que as novas companhias fiquem sob os mesmos vícios de má gestão dos seus predecessores, a lei também instituiu alguns requisitos quando se trata de governança corporativa, tais como, a criação obrigatória de um conselho de administração e de um conselho fiscal, bem como regras de nomeação de seus membros (por exemplo, um jogador profissional com um contrato de trabalho válido ou um membro de um órgão executivo de outra SAF não serão elegíveis como membros do conselho de administração ou fiscal de outra SAF). Além disso, para evitar quaisquer conflitos na tomada de decisões, a lei estabelece que o acionista controlador da SAF não pode deter um interesse direto ou indireto em outra companhia focada em futebol e quem detém ações em mais do que uma SAF perde todos os direitos de voto. Esses mecanismos protegem não só a saúde financeira da equipe, mas a liga como um todo, uma vez que proíbe práticas monopolistas.
Finalmente, a nova lei também estabelece um regime de tributação específica e progressiva para a SAF. Unifica, por pagamentos mensais em um único documento de arrecadação, os seguintes impostos: “IRPJ”, “PIS/COFINS”, “CSLL”, e contribuições para a segurança social, numa taxa que começa nos 5% incidentes sobre o faturamento mensal do clube durante os primeiros cinco anos, depois 4% a partir do sexto ano. Este novo sistema unificado procura proporcionar uma melhor previsibilidade aos valores detidos pelas companhias, permitindo-as planejar melhor as suas finanças em longo prazo. De forma semelhante, a SAF pode também receber financiamento adicional nos termos da Lei n.º 11.438/2006, conhecida como a “Lei de Incentivo ao Esporte”, que funciona grosso modo como um investimento público no setor esportivo, desde que estes fundos não sejam utilizados para pagar dívidas trabalhistas.
Recentes atualizações no mercado, como a aquisição de 90% das ações do Cruzeiro pelo ex-jogador Ronaldo “Fenômeno”, neste mês, ensejaram novas discussões aprofundadas sobre o tema e permitiram a ampla divulgação de informações sobre a SAF no país. Brevemente, Ronaldo assinou um contrato de intenção de compra com o Cruzeiro no final de 2021, com a indicação do cumprimento de determinadas condições precedentes, tais como a auditoria da equipe e alterações na sua administração. Após quase quatro meses de auditoria e diversas negociações entre as partes, o Conselho Deliberativo do Cruzeiro aprovou a celebração do contrato definitivo de aquisição e os desdobramentos legais desta transação. Apesar de já existirem outros clubes de futebol formalizados como SAF no Brasil, Ronaldo magnetizou os brasileiros com a inauguração dessa nova era do futebol brasileiro.
De forma geral, a introdução de uma estrutura empresarial nas equipes de futebol no Brasil é algo há muito aguardado pelo setor e esperamos que ajude a estabilizar a situação econômica da indústria do futebol, se transforme em uma nova forma de investimento de capital estrangeiro no Brasil, e, que as equipes de futebol se profissionalizem. Em suma, a SAF tem todas as marcas para ser um forte pilar central na indústria do futebol brasileiro.
[1] https://www.sportsvalue.com.br/pandemia-afundou-financas-dos-clubes-brasileiros-deficits-em-2020-foram-de-r-103-bilhao-e-dividas-de-r-10-bilhoes/