A COVID-19, classificada por muitos como o maior desafio ou missão da atual geração, inclusive pelo próprio Presidente Jair Bolsonaro e pelo Comandante do Exército, General Edson Pujol, está longe de ser extinta no Brasil e no mundo.
Aliás, o Brasil, bem como a América Latina em geral, são considerados o atual epicentro da maior pandemia já registrada nos últimos 100 anos, desde a gripe espanhola e, mesmo diante desse grave cenário, agravado por uma crise socioeconômica sem precedentes, os governos estaduais e municipais brasileiros ensaiam uma retomada gradual da atividade econômica.
E diante desse grave contexto, pergunta-se: quais as responsabilidades trabalhistas e criminais advindas desta retomada e como ela deve ser organizada?
Para responder a este questionamento, o primeiro passo é realizar uma breve diferenciação de tratamento entre empresas exercentes de atividades essenciais ou não essenciais, nos termos do Decreto Federal nº 10.282/20 e dos variados Decretos estaduais e municipais.
Empresas exercentes de atividades essenciais tinham permissão legal para permanecerem em funcionamento desde o início da quarentena, mas muitas delas, mesmo sem obrigatoriedade legal e por mera liberalidade, adotaram o home office como forma de prevenção contra a COVID-19. Nesse contexto de retomada, podem, portanto, solicitar o retorno de seus colaboradores, mantendo em home office ou afastados apenas os trabalhadores do grupo de risco.
Já as empresas exercentes de atividades não essenciais não tinham outra opção que não o fechamento de seus espaços físicos com a adoção, obrigatória, do home office ou das demais medidas previstas na MP 927/20, tais como banco de horas e antecipação de férias individuais ou, então, em cenários de maior gravidade econômico-financeira, a adoção das medidas apresentadas pela MP 936/20, tais como a redução proporcional de jornada e salário e a suspensão temporária do contrato de trabalho.
Contudo, com a expiração da vigência de muitas das medidas paliativas e o plano de retomada das atividades pelos governos estaduais e municipais, esse cenário começa a mudar e, com ele, surgem inúmeras preocupações tais como o modo como deve se dar a retomada das atividades e as responsabilidades dela decorrentes.
De saída, é importante advertir que a reabertura das atividades deve obedecer a todos os requisitos e prazos estabelecidos nos planos dos governos estaduais e municipais. Atendidos tais requisitos, indaga-se: qual a responsabilidade trabalhista das empresas no que tange a um tema específico, qual seja, a doença ocupacional?
Nesse aspecto, é importante pontuar que, quando da edição da MP 927/20, o artigo 29 estabelecia de forma expressa que a COVID-19 não seria considerada uma doença ocupacional, salvo se comprovado o nexo causal.
No entanto, em julgamento conjunto de 7 (sete) Ações Diretas de Inconstitucionalidade¹, ocorrido no dia 29/04/2020, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela inconstitucionalidade do artigo citado, ainda que em sede preliminar, e suspendeu a sua eficácia, sendo que desde então alguns veículos de comunicação têm difundido a ideia de que a COVID-19 seria considerada automaticamente uma doença ocupacional.
Porém, não foi esta a finalidade da decisão do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que, com a decisão da Suprema Corte, se aplica à COVID-19 as mesmas regras anteriores à edição da MP, que é a necessidade de comprovação do nexo de causalidade entre o ambiente profissional e a doença que eventualmente acometa o trabalhador, salvo para aquelas atividades essenciais que estejam na linha de frente do combate à pandemia da COVID-19, conforme argumentado pelo Ministro Alexandre de Moraes na divergência aberta com relação ao voto inicial do Ministro Relator Marco Aurélio Mello, que inicialmente havia entendido pela constitucionalidade de todas as previsões contidas na MP 927/20².
Na construção realizada pelo Ministro Alexandre de Moraes, o artigo 29 da MP fugiria da finalidade da Medida Provisória, de compatibilização dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, com o objetivo final de preservação dos postos de trabalho, além de, segundo ele, ofender inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que continuam expostos ao risco.
Nesse sentido, a partir de uma análise mais aprofundada, seria possível admitir, para aqueles setores que estejam na linha de frente do combate à COVID-19, como por exemplo o setor de saúde, uma espécie de responsabilidade objetiva, assim entendida aquela que independe de comprovação de dolo ou culpa.
Para as demais empresas que não estejam na linha de frente do combate à pandemia, se aplicaria a regra geral, qual seja, a necessidade de comprovação do nexo causal.
Contudo, em um contexto de pandemia, do grego “pandemías”, junção dos elementos “pan” (todo, tudo) e “demos” (povo), em tradução literal significando “todo o povo” e assim entendida como uma doença que se espalhou geograficamente, saindo de seu lugar de origem e atingindo cada canto do planeta³, se afigura extremamente difícil a necessária comprovação do nexo de causalidade hábil a caracterizar a COVID-19 como uma doença ocupacional.
Nesse sentido, para que eventual nexo de causalidade seja passível de afastamento, é de extrema importância que para além da efetiva adoção de todas as medidas acautelatórias recomendadas e determinadas pelo Poder Público, tais como: adoção de máscaras, disponibilização de álcool gel, medição de temperatura corporal e, quando o trabalho for interno, distanciamento entre os postos de trabalho e das mesas no refeitório, além da intensificação da limpeza do local de trabalho e das demais superfícies de contato. Entre outras, é igualmente de extrema importância que a empresa registre e evidencie a adoção de todas as medidas adotadas.
No entanto, assim como a sociedade está diante de um atual cenário de incertezas sobre a evolução da pandemia e seu término, bem como com suas consequências socioeconômicas, tem-se também um forte cenário de incertezas sobre como os tribunais analisarão esse tema.
Em razão disso, outra medida não resta que não acompanhar e contribuir de forma efetiva na construção da jurisprudência, desde o 1º (primeiro grau) até o Tribunal Superior do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal.
Como se não bastasse toda a preocupação legítima com os riscos trabalhistas decorrentes da retomada das atividades, há de se considerar também os riscos criminais deste contexto.
Em primeiro lugar, imperioso esclarecer que a responsabilidade penal decorrente da atividade empresarial não recai sobre a pessoa jurídica, mas sim sobre a pessoa física. As pessoas físicas que tendem a ser responsabilizadas criminalmente são os sócios, membros do Conselho de Administração, diretores, gerentes e responsáveis técnicos.
Para a configuração da prática de um crime, é preciso que exista não só uma ação ou omissão que dê causa ao resultado ilícito, mas também a consciência e a vontade de praticar o crime, ou, havendo dever legal de cuidado, este não seja observado, causando o resultado delituoso.
No âmbito da crise de saúde pública ocasionada pela COVID-19, há dois tipos penais que demandam especial atenção, cujas especificidades explicaremos a seguir.
Infração de medida sanitária preventiva (art. 268 do Código Penal)
Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.
Para sua configuração, não se faz necessário o efetivo contágio ou mesmo a existência de risco para saúde das pessoas. Basta que as determinações do poder público sejam infringidas. E aqui, tanto as determinações de fechamento e abertura quanto as determinações das condições a serem seguidas quando da reabertura.
Assim, é preciso recorrer aos decretos editados pela União, estado e município para sabermos se a volta ao trabalho presencial fere alguma disposição dos poderes públicos e, por consequência, configura o crime do artigo 268 do Código Penal.
Além disso, é imprescindível que se observe que os setores autorizados a retomarem suas atividades presenciais deverão obedecer os planos dos governos estaduais e municipais, bem como as medidas de higiene e prevenção de contágio.
Desse modo, os sócios, membros do Conselho de Administração, Diretores, Gerentes e colaboradores responsáveis pela implementação das medidas de higiene e prevenção de contágio podem ser responsabilizados pela prática do crime do artigo 268 do Código Penal se não o fizerem.
Outro crime bastante relevante no atual cenário é aquele descrito no artigo 132 do Código Penal:
Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
Importa ressaltar aqui que não é preciso que a contaminação da vítima de fato ocorra. Basta que a saúde ou a vida da vítima seja exposta a uma situação real de perigo.
Neste caso, o responsável pela implementação das medidas de prevenção de contágio na empresa pode ser responsabilizado criminalmente, caso tais medidas não tenham sido efetivamente aplicadas.
Também é possível a imputação desse crime no caso de pessoa pertencente a grupo de risco que foi exposta à situação de perigo por conta da obrigação de voltar ao trabalho presencial. Em ambas as hipóteses é possível a cumulação desse crime com aquele previsto no artigo 268 do Código Penal e descrito no item “a”.
Para evitar-se o risco de responsabilização do crime em análise, reforça-se a necessidade do cumprimento das normas de higiene e prevenção de contágio listadas nas respectivas normas federais, estaduais e municipais.
Desse modo, a retomada das atividades deve ser feita com toda a cautela não só pela perspectiva dos riscos sanitários, mas também sob a ótica dos riscos legais e, para isso, é imprescindível uma análise integrada das normas federais, estaduais e municipais sob suas diferentes perspectivas.
¹Disponível em: [http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442355]
²Disponível em: [http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442355]
³Disponível em: [https://www.dicio.com.br/pandemia/]
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